Chamada Revista Criação & Crítica n. 21

O Tabu das letras: entre o ético e o estético, a crítica do literário
 
Faz sentido falar de ética na literatura hoje? Ou seria mesmo possível fazê-lo sem resvalar para o fosso comum da crítica moralista, que reduz a provocação estética a certo arcabouço moral, para o papel edificador do literário à responsabilidade do escritor? A ouvidos sensíveis, a ideia conjura fantasmas. E eles surgem sempre que a palavra ética se justapõe ao literário em qualquer sentença (e, aqui, o sentido da palavra é duplo). Mas se o incômodo existe, é porque se escondem, no tema-tabu, continuidade e ruptura – um aparente paradoxo que demanda reflexão. No embate do ético e do estético estará a crítica do fazer literário.
 
Já em Platão e Aristóteles, a ideia do bom e do bem se confundiam, de forma distinta, com a narrativa e sua relação com o mundo. Bem depois do Schiller das Cartas sobre a educação estética da humanidade e do moralismo romântico inglês, Sartre viu no escritor engajado um agente de mudança no mundo. Até que a crença estruturalista e pós-estruturalista fizesse da autonomia absoluta do literário a pá de cal de qualquer intrusão ética na estética (bastião hoje esquecido, posto que geralmente aceito). Ainda assim, entre o estético e algo que só se pode chamar de ético, existe um debate eterno que preenche prefácios, biografias, críticas na imprensa e, cada vez mais, o corpo dos próprios romances.
 
Como mostrou Liesbeth Korthals Altes na edição da revista Études Littéraires consagrada ao tema, em 1999, a própria noção de ética foi desvalorizada com a ascensão das minorias ao lugar da voz que trata sua própria experiência. Ela remeteria ao universo humanista, perdido com o papel definido da literatura em melhorar o homem. O sujeito foi desconstruído, multiplicado. Verdade, razão, responsabilidade: tais conceitos que viraram miragem. O Holocausto, diz Agamben em O que resta de Auschwitz, complexificou o debate: o que seria ético na narrativa pós-trauma e, sobretudo, na crítica dessa narrativa?
 
E eis que as escritas de si, como a autoficção, decidem se arvorar o papel de vanguarda sem limites, revisitando movimentos literários em seu cerne crítico-teórico para propor, como espaço mesmo do romance, além da indecibilidade de qualquer pacto ou estatuto, um mote cabal: a negação dos limites do que pode a literatura em relação ao mundo real.
 
Quando os rescaldos do pós-estruturalismo na crítica literária torcem o nariz para a ideia de ética no literário, o próprio campo da filosofia se volta à literatura para pensar a relação do homem com o mundo via narrativa (já há quem chame de ethic turn). Rorty e Derrida o fizeram. Martha Nussbaun, em Poetic Justice, ditou o caminho. Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa, após um mergulho na história da filosofia em sua relação com o texto histórico e literário, concluiu: há ética em cada passo narrativo do homem.
 
Barthes também fez um caminho reflexivo que parece ter se pautado pela afirmação, sem enfatuação, de um sujeito que escreve e acredita na escritura como modo de não exercer uma pressão sobre o outro. De O grau zero da escritura à Preparação do romance, tem-se um percurso que inscreve uma ética da delicadeza, da não arrogância e do afeto que, sem decair em qualquer excesso ou histeria, habitaria o espaço da literatura como atividade fundamentalmente perpassada pelo embate entre o ético e pelo estético. E Rancière, d'A Partilha do Sensível ao Politique de la littérature, confirma: entre o poético, estético, e o ético, produz-se ainda — e sempre — o político.
 
Com As Flores do mal e Madame Bovary, Baudelaire e Flaubert sofreram processos porque teriam atentado contra a moral e os bons costumes. Émile Zola foi processado e condenado por se apropriar de uma identidade real para criar um personagem (nada lisonjeiro) de romance. Mais de um século depois, Christine Angot, Lionel Duroy e tantos outros autores (se ficarmos apenas na França) foram processados e condenados por se apropriarem de nomes e histórias de vidas igualmente reais - o que, argumentam uns, destruiu suas vidas. No ataque, a voz da justiça ou do senso-comum: valores morais, respeito à ética. Na defesa: a autonomia estética, inatacável, do literário. Entre literatura e ética, apenas o judiciário. Onde fica a crítica literária nisso?
 
Essa edição de Criação&Crítica convida os pesquisadores a avançar em qualquer ponto desse complexo itinerário, que perpassa o ético, o estético e o político via a literatura e sua crítica. Seria ética a relação de um autor com seus personagens ou dessa literatura com o mundo da leitura? Para uma crítica da literatura em relação à sociedade, há espaço para uma crítica ética da experiência estética do literário, como sugeriria o Lévinas de Ética e Infinito? Como fazê-lo sem aplicar, de forma deletéria, o peso dos saberes do campo da filosofia sobre os estudos literários, campo esse em eterna busca de legitimidade? Ethos, visão de mundo, filosofia moral, o que a literatura traz para a ética e vice-versa? E como a crítica pode fazer uso dessa relação para repensar a literatura?
 
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Equipe Editorial Revista Criação & Crítica